segunda-feira, 29 de junho de 2009

Resenha publicada no caderno Pensar - jornal Correio Braziliense


-->Navalhas na carne
Em três livros de contos, escritores de diferentes gerações enfrentam os dilemas éticos e estéticos do Brasil contemporâneo por meio de narrativas incisivas

Fernando Marques - Especial para o Correio
Correio Braziliense - Caderno Pensar - 20/06/09

Sabemos que os crimes, particularmente o mais grave deles, o assassinato, possuem enorme apelo ficcional, na literatura, no cinema, nos dramas de televisão. No início do século 19, o escritor norte-americano Edgar Allan Poe estabeleceu os primeiros contornos desse amplo gênero, que pode envolver mistério, terror e exercícios dedutivos, ou todos esses aspectos combinados. É claro que muito do que foi invenção se converteu, há tempos, em lugar-comum: as histórias de crime e castigo são tantas vezes mero entretenimento, além de se mostrarem ideologicamente tendenciosas, orientadas para a vitória do herói, representante da boa ordem. Quando isso acontece, elas acabam por dizer pouco ou nada sobre a circunstância dos que matam e morrem. José Rezende Jr., Liziane Guazina e Antonio Carlos Viana, contistas brasileiros e contemporâneos de quem falaremos aqui, não são autores de ficção policial, embora possam flertar, de passagem, com as convenções do estilo. No entanto, importa perceber a atitude incisiva, ao mesmo tempo ética e estética, que demonstram ao enfrentar personagens cruéis, postos em situações limítrofes como a do homicídio. Tais personagens se acham em Eu perguntei pro velho se ele queria morrer (e outras estórias de amor), de Rezende, Cine privê, de Viana, comparecendo ainda, em menor escala ou em escala diferente, a Entre facas e mais alguns contos, de Guazina. São retratos de criaturas reais que lotam o noticiário, onde raramente recebem tratamento mais do que episódico. Temos acesso direto à consciência desses criminosos, sobretudo nos contos de Rezende e de Viana; os relatos de Liziane mostram-se mais genuínos e intensos quando a autora se ocupa dos pequenos e figurados assassinatos cotidianos. O acesso a essas mentes é dado pelo recurso à narração em primeira pessoa, com o ponto de vista fixado no interior das criaturas, em relatos-monólogos que nos permitem contemplá-las de perto. As feras ou supostas feras não aparecem chapadas como no cinema comercial, nem serão necessariamente punidas em desfechos reconfortantes. O confronto com personagens à margem da ordem moral da classe média, a dos autores e a nossa, não é o único aspecto digno de nota na boa literatura praticada por eles. Mas vale insistir no tema por sua óbvia importância, buscando aferir o que os distingue da ficção conservadora em livros e filmes. Sentimentos contraditórios Na literatura e no cinema convencionais, o assassinato excita os espectadores por constituir quebra da ordem vigente. Afrontadas, a sociedade e suas leis vingam-se dos infratores, depois de uma série de reviravoltas: as dificuldades ultrapassadas pelos protagonistas conduzem afinal à restauração da ordem. Nem sempre se analisam os motivos dos criminosos – o que a literatura mais ambiciosa deve fazer, não para justificá-los, mas para nos ajudar a entendê-los. Ou, quando menos, para exibi-los como de fato são, sem retoques. Os três livros em pauta afastam-se, felizmente, das convenções didáticas. Veja-se, por exemplo, o conto que dá título ao livro de José Rezende. A história é narrada por um bandido jovem que está prestes a matar o seu protetor, espécie de padrasto que o criou depois de ele ter sido abandonado pela mãe (não conheceu o pai). O velho, hoje doente, costumava espancá-lo quando cometia pecados como o de faltar às aulas. Sentimentos contraditórios misturam-se: “O velho batia com gosto e com força, mas mesmo nessas horas o olhar dele era de bondade, eu acho que bater daquele jeito também era um jeito de mostrar que gostava de mim, que eu era bom e que ele ia lutar por mim, ainda que pra isso ele tivesse que lutar contra mim”. O conto discute a questão da índole dos que mergulham no crime. Trata-se aqui de um assassino profissional, e razões sociais também comparecem ao complexo de causas da perversidade: “Ou seja: eu mato pobre. Muito raramente eu mato um rico, a mando de algum mais rico, mas pra matar rico eu cobro dobrado, e é engraçado, porque a coisa que eu mais aprecio é matar rico, por mim eu matava de graça”. Pouco adiante, o ressentimento de classe se conforta quando o personagem diz gostar “de ver a cara deles” na hora em que descobrem “que não podem levar pro inferno a grana que juntaram esfolando os pobres”. Só os cínicos não enxergam o componente social na gênese do assassinato, e o mineiro-brasiliense José Rezende nos auxilia a compreendê-lo com sua prosa límpida, aderente à linguagem provável desses personagens. Registre-se a mestria do autor noutros temas (todos zunindo em torno de amor e morte), como se dá no áspero “Quase nada”, em que paisagem e subjetividade áridas refletem uma à outra, lembrando a tradição em que se engasta a obra de um Graciliano Ramos; ou no belo “O amor surdo, mudo, morto”, onde o casal de surdos-mudos acirra, com suas limitações, a dor das despedidas. A coletânea é o segundo livro do ficcionista e traz 12 histórias de redação madura, precisa. A gaúcha Liziane Guazina organizou seu Entre facas segundo a metáfora das lâminas: as três seções em que se distribuem os 22 contos breves, ilustrados por Helena Jansen, chamam-se “Canivete”, “Punhal”, “Navalha”. Uma história como “Léo e Lia”, na primeira parte do livro, trabalha as ilusões amorosas contemporâneas, que saltam da internet para o encontro pessoal e deste para o casamento, na velocidade dos e-mails. O idílio termina em desastre. Imponderáveis familiares A escritora soa mais convincente e singular, porém, nos relatos intimistas, nos quais os problemas não resultam em episódios ruidosos, mas em atitudes inusitadas como a da senhora de “Manchas no carpete”. A mulher, diante da indiferença do marido, alivia a bexiga em plena sala, numa passagem que lembra o prosaísmo exasperante de Dalton Trevisan. Outro conto a destacar é o da menina espantada com os movimentos do pai a se torcer no banheiro, gestos a que ela assiste por acaso, no delicado “O incidente”. A autora sabe contar nas entrelinhas, isto é, narra sem revelar todos os detalhes ou os deixa velados mesmo no final, o que eventualmente se transforma em saudável desconcerto para o leitor. O melhor é quando a surpresa não acontece como valor em si, mas nos leva a perceber verdades insuspeitadas. Esse é o primeiro livro-solo da escritora. O sergipano Antonio Carlos Viana, autor de outros livros de contos, lançou há pouco Cine privê, com 20 histórias. O segundo texto do livro, “Duas coxinhas e um guaraná”, nos reconduz ao tema do assassinato. Diferentemente do que se passa no conto de Rezende, aqui, no momento em que a história se inicia, o crime já se consumou. O que lemos a seguir corresponde aos pensamentos do protagonista, após matar a própria mãe por asfixia. Fatos e sentimentos não bastam para explicar o crime; são quase triviais, embora nada alegres: sua falta de dinheiro, sua inapetência para o trabalho, o alcoolismo da mãe, que regula caprichosamente os trocados dados ao filho. Embora se revele apreensivo quanto à possibilidade de ser preso, o criminoso não demonstra maior comoção com o ato. O absurdo reside justamente nisto: “Não tinha outro jeito senão apertar o pescoço dela, só pra assustar, mas de repente descobri que era tão bom apertar o pescoço de alguém, os ossos tão molinhos, a cabeça caindo para trás, bem levemente. Resolvi ir até onde meu coração mandasse”. Já o conto “Cine privê”, narrado em terceira pessoa, apresenta a figura de um homem que trabalha como faxineiro em cinema pornô. O que há de repulsivo e, por isso, degradante nas tarefas de Manuel faz pensar nas pessoas largadas nos últimos lugares da fila social. O autor explora precisamente esse núcleo de ignomínias, integrado, até, pela sífilis, que veio a atingir a filha de Manuel e Doralice, Nildinha, nascida com problemas: “A mulher sabe que foi ele mesmo o culpado e isso não tem perdão. Quem falou foi o doutor, e ela ficou, desde então, com um ódio rasgado do marido”. Estigmas coletivos se acrescentam dos imponderáveis familiares. Antonio Carlos Viana exibe pleno domínio de seus textos, que passeiam por diversos assuntos, além dos que dão base aos contos citados. O ambiente de suas histórias alterna-se entre campo e cidade: o contista flagra, com inventividade e eficiência, tanto figuras urbanas quanto campesinas, estas às vezes presas a espaços economicamente estagnados, congelados num país de crescimento impiedosamente dinâmico. Os motes desenvolvidos pelos três escritores estão longe de se esgotar no tema do assassinato. Insisti nele porque os homicídios acham-se tristemente banalizados, cometidos inclusive pelos governos. Disciplinas como psicologia e sociologia nos devem explicações sobre as causas da violência, com vistas a minorá-la – e a literatura pode ajudar no mutirão. --> --> -->
Fernando Marques é jornalista, doutor em literatura brasileira pela UnB. Publicou Retratos de mulher (poesia, Varanda), Zé e o livro-disco Últimos (peças teatrais, Perspectiva) -->

sábado, 13 de junho de 2009

Brasiliensis

O jornalista e contista carioca, radicado em Brasília, André Giusti, lança no próximo dia 16/6, no T-Bone, da 312 norte, "A Liberdade é amarela e conversível", publicado pela 7Letras. André é um dos que fazem parte da resistência cultural da cidade. Vale a pena conferir.