domingo, 24 de maio de 2009

As Orelhas
Ele ouvira o doutor Dráuzio falar, no Fantástico, que as orelhas crescem conforme os anos avançam. As células continuam se reproduzindo em cartilagens, membranas, peles, apesar - e isto ele sabia bem - de no resto do corpo não haver vontade para tanto. Em particular, para se reproduzir, ironiza, ensaiando um sorriso em frente ao espelho do banheiro. O vapor umedece seus olhos. A espuma de barbear encobre metade do rosto.
Desconfiara. Então as pelancas caem e as orelhas crescem? Nos últimos tempos, percebera uma certa dificuldade para se abaixar, algumas pontadas nas costas impediam movimentos bruscos. Mas ainda caminhava no parque pela manhã e cumpria as funções regulares com a mulher.
No aniversário, ganhara um cartão de presente do neto, com uma foto da família na praia. Custou a se reconhecer naquele sujeito redondo, com uma dobra de carne embaixo do queixo e ar de Papai Noel em fim de Natal, abraçado a uma garrafa de cerveja. Diante de sua incredulidade, o neto abrira um sorriso, como quem diz coitado do vovô.
Mesmo assim, quando acordava, ia ao banheiro na esperança de que o espelho não mentisse. E ele não mentia. Lá estavam os olhos miúdos, a testa sem vincos, os fios retos, indomáveis. Estranho ter-se dado conta apenas agora. O mais nojento de tudo é não avisarem, pensa, enquanto molha a lâmina de barbear no jato de água quente, deixando a espuma perder-se pelo ralo. Um piscar enviesado, um risinho, a fofoca antes de entrar na sala. A mulher, os filhos, os colegas de escritório. Nada.
Às oito em ponto, levantou-se da cama e sentiu o peso indefinido na cabeça. Poderia ser a insônia latejante da noite, as duas garrafas e meia de Cabernet Sauvignon de origem pouco respeitável, o leitão mal digerido do jantar. Cambaleou pelo corredor, buscou o espelho, a testa orgulhosa. Só viu orelhas, duas enormes, abanando-se, risonhas. Trêmulo, iniciou o ritual de barbear-se, fingindo não perceber o inevitável. (continua...)

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